domingo, 9 de março de 2008

Escovas


Eram dois estranhos.


Desconhecidos de uma vida inteira, que, mais estranhamente ainda, dividiam o espaço das coisas mais íntimas. Pra ela, isso podia ser resumido em um só objeto: a escova de dentes.


Aquele pequeno pedaço de plástico com cerdas continha partes biológicas dela. Era íntimo demais. O potinho de acrílico azul ficava no banheiro que também era dividido por eles. Imóvel. Estático.


Impossível acreditar que aquele local em que nem seu pai entrava ao mesmo tempo que ela, agora era dividido sem pudores aparentes com aquela pessoa. Prazeres particulares, como o café com leite gelado ou sentar na janela e observar os passantes e suas vidas, agora tinham companhia. Não tentava medir a intensidade daquela presença do seu lado. Não fazia julgamentos com direito a céu e inferno: apenas sentia - coisa que, para ela, era a mais difícil de fazer dissociada de outras.


No meio de todos os sentimentos, veio um pensamento que a deixou atordoada: como uma pessoa que não viu seu primeiro tombo e não sabe que ela não gosta do chocolate, e sim das embalagens dos bombons, pode estar na mesma casa que ela e dividir seu porta escovas de acrílico?


Eles passaram mais tempo de suas vidas no anonimato sem graça de quem não tem um par e, agora que estavam juntos, não havia uma cicatriz da infância que tivesse a história dividida. Não tinha um pontinho dos anos de sustentação que tivesse vindo à tona. Apenas vivam juntos, retratando os gostos e desgostos a partir de quando se conheceram.
Mas a escova de dentes continuava ali. Molhada e encostada, como numa espécie de abraço à outra.
O temos pela intimidade que talvez fosse precoce, tomou conta dela. Estava acostumada ao macarrão à bolognesa dominical, mas o único almoço que faziam juntos, era feito em 3 minutos e no sabor legumes. Gostava de dormir com a cabeça coberta, de meias e esparramada, como se ainda vivesse sozinha. O edredom milimetricamente colocado sobre a cama a deixava enervada, e o amargor das manhãs sem companhia também. Lembrou de quando sabia que estava sozinha, e não apenas se sentia.


Pensou que talvez os lugares divididos na mesa e no sofá estivessem ficando com a pessoa errada. “Quem vai saber?”


Caminhou para o banheiro. Olhou o acrílico azul. Estavam lá, as duas. A sua quase seca. Aproveitou o momento, colocou na sua nécessaire e saiu.



Sentiu-se mais íntima de si mesma.

2 comentários:

Anônimo disse...
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Daniela Yoko Taminato disse...

Intimidade

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