quinta-feira, 24 de julho de 2008

Roupas limpas

Ela entrou no quarto que não era dela só para deixar mais uma braçada de roupas limpas. Era sempre a mesma desculpa usada para verificar se aquele mundo de peculiaridades estava de acordo com as suas expectativas.

Procurava sempre por coisas fora da normalidade. Uma prova de que as palavras vãs que dizia não eram tão vazias assim. Um bilhete, um comprovante de pagamentos, uma cartela de comprimidos: qualquer coisa poderia servir para ratificar suas palavras banhadas no seu amor torto.

Não sabia ao certo porque atacava tanto. Confiava em tudo o que lhe passara há tempos atrás e dizia que não confiava “é nos outros”. Sabia que seu discurso não era condizente com suas atitudes.
Enquanto remexia na gaveta com folhas, poemas, avisos e pedaços de um mundo que não era o dela, encontrou um desenho antigo. Os traços prematuros datavam de 14 anos atrás. Foi como se uma caixa tivesse sido aberta dentro dela: lembrou daquela que procurava pela sua mão antes de dormir e a repreendia pelos palavrões falados. Pensou que alguém tão doce como aquela que ela tinha não poderia ter se tornado nada que não estivesse nos trilhos daquele desenho.

“Mas ela anda tão estranha...”, pensou alto. Não acreditava, mas tinha medo. Estava certa da mudança, só não sabia ainda os motivos. O quarto sempre era mais importante do que as horas em família. O computador parecia uma ótima companhia e sempre havia algo mais interessante pra fazer do que gastar seus momentos na sala ou numa área comum da casa. “Na gaveta de baixo, quem sabe?”.

Abriu outra gaveta com medo, sem saber ao certo o que procurava e se queria encontrar alguma coisa. Quanto mais procurava, mais as lembranças se tornavam reais. Ouvia as risadas, as músicas no rádio da sala, sentia o mesmo perfume ocre que não saía de sua malha branca misturado ao da cozinha sendo limpa com a companhia dos velhos tempos. Sentiu o antigo frio na espinha ao lembrar de quando escurecia e tinha que proteger, além dela - e tudo o que isso envolve -, suas várias personalidades. Lembrou dos seus dias "não tão bons", quando a louça não havia sido bem lavada ou as falas eram altas demais e essa lembrança veio acompanhada de um barulho ardido, como se uma mão se chocasse a um pedaço de carne.

Lembrou dos gritos, gemidos, das súplicas e da ira com que tudo acontecia. Enfim extravasava. E sentia a culpa e a tristeza de um crime inafiançável que não prescrevia jamais.

Chorou.

Olhou para a cama desfeita onde havia largado tantas vezes a sua melhor companhia aos prantos. Parou.

Sentiu que já não tinha alguém para ficar na cama até mais tarde ou lhe preparar o café. Perdera o melhor que tinha ( e que ainda poderia ter!) e não era culpa de alguma outra pessoa – aquelas nas quais não confiava. Ninguém a havia tirado do seu lado.

Ela a havia destruído.

domingo, 13 de julho de 2008

A rosa e o tempo


Parecia um filme estranho. Daqueles de que não se sabe a origem.
No momento da crise, a música que tocava no seu computador causador de tudo sobressaiu de tal maneira que ela se perdeu no compasso e levitou por entre as notas. Levitou porque, dançar não era a sua vontade, naquele momento.
Elementos espalhados de forma displicente e inconsciente pelo seu quarto tornavam a cena ainda mais decadente. Visto por outro lado, poderia até ser poético: os resquícios de um sambinha triste no outro cômodo, a rosa carmim, deitada sobre a cômoda, iluminada pelo sol de inverno que ela, por vezes, tentara dividir em vão. A janela que mostrava a árvore cheia de flores lilás a cumprimentava de um jeito cordial e solitário.
E era assim que ela se sentia a cada vez que sua janela para o mundo era violada. Solitária. Sem aquela ligação superficial que a tornava sensível.
Pensou que nunca, num momento como aquele, a trilha sonora havia sido real. Lembrou da véspera, quando ganhou a rosa e um sorriso, e sentiu-se incrivelmente incapaz por não ter o domínio do tempo. Pensou que, agora, tinha a melodia que gostaria para a despedida de ontem.
Se controlasse o tempo, pará-lo-ia naquela lembrança. Seria fácil colocá-lo em meio às suas outras lembranças singelas e acima da realidade. Era fácil.
Na teoria.

Só percebeu que seus olhos continuaram abertos quando sentiu uma lágrima escorrer. Aquela dos últimos tempos. Uma lágrima seca, que ilustrava o momento e dava a ela a única noção do que acontecia: estava cansada.

As notas foram ficando cansadas de ajudá-la a flutuar. Secou as lágrimas do rosto e deixou as outras pra depois, enquanto escondia a rosa carmim do tempo.